Pôr de sol , Arpoador
Há uma semana
acordei bemol tudo estava sustenido sol fazia só não fazia sentido
Paulo Leminski tinha mesmo razão! Citações, confabulações, indagações, conversa de boteco, psicologia de salão de beleza e uma pitada generosa de filosofia.
de tanto não fazer nada/acabo de ser culpado de tudo/esperanças, cheguei/tarde demais como uma lágrima/de tanto fazer tudo/parecer perfeito/você pode ficar louco/ou para todos os efeitos/suspeito/de ser verbo sem sujeito/pense um pouco/beba bastante/depois me conte direito [...]
(...)Ah, todo cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do caisE se repara de repente que se abriu um espaçoEntre o cais e o navio,Vem-me, não sei por que, uma angústia recente,Uma névoa de sentimentos de tristezaQue brilha ao sol das minhas angústias relvadasComo a primeira janela onde a madrugada bate,E me envolve como uma recoração duma outra pessoaQue fosse misteriosamente minha.(...)E, sem que nada se altere,Tudo se revela diverso.(...)Na minha imaginação ele está já perto e é visívelEm todaa extensão das linhas das suas vigias,E treme em mim, tudo, toda a carne e toda a pele,Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barcoE eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo.(...)Escuto-te de aqui, agora , e desperto a qualquer coisa.Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.Sinto corarem-me as faces.Meus olhos conscientes dilatam-se.O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança, (...)Apelo lançado ao meu sangueDum amor passado, não sei onde, que volveE ainda tem força par me atrair e puxar,Que ainda tem força par me fazer odiar esta vidaQue passo entre a impenetrabilidade física e psíquicaDa gente real com que vivo!(...)Ardo vermelho!(...)Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...Eu quem sou para que chore e interrogue?Eu quem sou para que te fale e te ame?Eu quem sou para que me perturbe ver-te?Larga do cais, cresce o sol, ergue-se o ouro,Luzem os telhados dos edifícios do cais,Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-tePrimeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),Ponto cada vez mais vago no horizonte...Nada depois, e só eu e a minha tristeza,E a grande cidade agora cheia de solE a hora real e nua como um cais já sem navios,E o giro lento do guindaste que como um compasso que gira,Traça um semicírculo de não sei que emoçãoNo silêncio comovido da minh'alma...Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)